O Monge
Uma bela manhã, pelas nove o meu telefone móvel acorda-me.
Era o meu grande amigo de peito Kenneth Lau, um Chinês de Hong Kong, na altura
o diretor-geral da Sybase, na antiga Colônia Britânica.
- Fortunato! Estou em Macau, cheguei esta manhã. Preciso que
venhas ter comigo urgentemente ao Templo Chinês da Taipa - Diz-me ele com um ar
preocupado.
- Wake-up man... it's urgent my friend - Continua ele.
Mau-mau, lá vem confusão e ainda nem sequer acordei, pensei
eu.
- Ok, dá-me meia hora e vou já ter contigo - Digo-lhe ao
mesmo tempo em que rastejo para fora da cama.
Não sei como acordei, outra vez, na casa de banho quando me
vi ao espelho e aí comprendi que tinha de tomar banho ao mesmo tempo em que
lavava os dentes e me vestia. Meti-me no meu carro azul-escuro e às dez menos
um quarto entrei no Templo Budista da Taipa do Território de Macau.
- Bom Dia Kenneth, como vais meu amigo - Atiro eu enquanto
lhe aperto a mão.
- Tudo bem, mas preciso que me ajudes a realizar um desejo,
um sonho que tenho desde o ano passado - Diz-me o meu amigo Kenneth com um
sorriso, ele já adivinhava o que eu ia dizer.
- Kenneth, acordas-me às nove da manhã para realizar sonhos?
Os sonhos só se realizam depois das nove da noite - Digo-lhe eu com ar
malicioso, ele inteligente como é topou logo a piada e sorriu.
- Ok, anda comigo - E lá segui eu atrás dele, por um
labirinto estranho de escadinhas, patamares, varandas, pequenos mausoléus,
muros, pórticos, pequenos canteiros, plantas, árvores,... um Mundo estranho de
arestas arrebitadas para o céu de cores berrantes e alegres onde o vermelho
vivo predomina em contraste com o lindo verde da vegetação.
O Templo da Taipa é na realidade um bonito jardim junto do
sopé de um verde monte, urbanizado segundo a típica construção milenar dos
mausoléus e monumentos Budistas. Sendo a entrada pela rua que vai do Hotel
Hyatt para o Macau Jockey Club.
Depois de muito subir e descer dou comigo e o Kenneth
parados a olhar para uma bela estátua feita de mármore branco com cerca de um
metro e meio de altura.
A bela Deusa está em cima de um pedestal circular com
quarenta centímetros de altura rodeada por belos vasos com plantas. Tem um
olhar sereno um rosto alongado, uns belos olhos asiáticos, grandes e rasgados.
A beleza do vestido comprido e do cabelo em mármore branco completam-se com
duas elegantes mãos, onde os dedos se estilizam em bonitas e simbólicas
posições Tauistas.
- O que achas dela? Vês alguma coisa que te surpreende? -
Pergunta o meu amigo.
- Oh Kenneth, acordas-me às nove da manhã para me perguntar
isto? - Digo eu, e continuo...
- Ok, tem três dedos partidos na mão esquerda, o polegar, o
indicador e o do meio - Um silêncio profundo invadiu tudo à nossa volta por
vários minutos.
Eu sou Cristão Católico, o meu amigo é Budista. O respeito
que tenho por todos os povos e crenças levou-me a nada dizer e a calmamente
compreender a profundidade e a beleza da sensibilidade do meu grande amigo
Chinês, Kenneth Lau. Aquele silêncio de um par de minutos sintonizou-nos para o
mesmo problema e a pureza de pensamentos invadiu-nos por uma vaga tristeza. Eu
senti-me impotente perante o fato dos dedos não estarem lá...
- Eu e tu vamos colocar os dedos na estátua desta Deusa
Chinesa - Disse o Kenneth sem tirar os olhos da bela mulher de mármore branco.
- O quê?... Como é que queres fazer isso? - Eu fiquei
sinceramente preocupado porque sabia que ia sobrar para mim...
- Eu mal falo Cantonense, como queres que eu te possa
ajudar?
- My Friend, o ano passado ganhei muito dinheiro. Desde
criança que todos os anos venho a este Templo Chinês em Macau, adoro esta
Deusa, e fico triste quando a vejo sem os dedos. Como tu és o meu grande amigo
aqui em Macau, embora não sejas Chinês pensei que tu e eu podíamos fazer uma
boa ação juntos. A nossa velha amizade ficaria marcada por este Tratado Secreto
entre nós os dois - Disse ele já a brincar.
Eu fiquei calado, a sorrir para ele, ao mesmo tempo em que
abanava negativamente a cabeça. Realmente era um gesto de extrema beleza, a
amizade entre nós os dois iria ficar selada para sempre se conseguíssemos
concretizar este sonho do Kenneth.
- Vamos a isso Kenneth, o que é que tenho de fazer? - Disse
eu, com coragem.
- Primeiro, temos de convencer o Monge Budista do Templo a deixar-nos
colocar os dedos na estátua - O Kenneth mostrou preocupação e com razão.
Levamos cerca de uma hora para encontrar o Monge Budista.
Subimos e descemos escadarias e por fim lá descobrimos o velho Monge
responsável pelo Templo.
Um castiço Chinês, incrível. Baixinho, de pernas arqueadas,
fato de karaté preto, como umas meias brancas até ao joelho, mocassins onde o
polegar fica separado. Parecia ter sido retirado de um livro de história antiga
do império Chinês.
O Kenneth fez uma vênia e ajoelhou-se, eu fiz a vênia e como
estava mais atrás fiquei à espera. O velho monge tocou no ombro do Kenneth e
este levantou-se.
Falaram, falaram, em Mandarim, depois em Cantonense. Eu não
percebi nada, a não ser o NÃO na boca do Monge. E comecei a ver o meu amigo a
ficar desesperado. Meia hora de conversa e nada.
- Acho que não vamos conseguir - Diz-me o Kenneth com um ar
deprimido - O Monge diz que quando a estátua veio da China aqui para Macau, já
lá vão vária dezenas de anos, a Deusa já não tinha os dedos.
Realmente, era um argumento de peso. E aí eu tive uma ideia:
- Kenneth, pergunta-lhe lá se o artista que fez a estátua, a
fez sem os dedos? - Disse eu, sabendo de antemão que para qualquer pessoa
racional não havia hipóteses perante este argumento.
E assim foi, o velho Monge Budista depois de ouvir o
Kenneth, respirou fundo e depois de uma breve pausa, concordou.
O meu amigo ficou radiante. Despedimo-nos do velho Monge que
nunca nos mostrou um sorriso. Mas, depois de duas vênias, eu não resisti,
apanhei-lhe a mão e dei-lhe um aperto de mão. Moral: um BOM aperto de mão faz
sorrir os Monges Budistas que nunca sorriem...
Um Típico Almoço Tradicional Chinês... Verde Gelado
E lá fomos os dois, muito satisfeitos, almoçar num velho
restaurante Tradicional Chinês no Porto-Interior de Macau, onde raramente
ocidentais entram, pois não sabem o que encomendar nem os pratos são muito do
gosto dos estrangeiros.
Além disso, desde o cardápio até aos empregados só se fala
Chinês.
Antes compramos três garrafas de vinho-verde Português bem
gelado num supermercado, um bom truque que eu ensinei ao meu amigo Kenneth...
de preferência Aveleda, Casal Garcia. E no restaurante os empregados - tudo
gente com mais de cinquenta anos e vestidos a rigor - sabiam o que era um balde
de gelo... perfeito.
O cardápio foram uns dez ou doze pratos diferentes, iguarias
diversas e únicas, tradicionais de Fujian uma conhecida província Chinesa, de
onde os donos eram oriundos, aliás, o velho dono já era amigo do pai do Kenneth
Lau.
Omelete de vermes, camarão frito, lagosta quente picante, cobra frita, brócolis
fritos com vieiras,... coisas difíceis de definir. Mas de sabores fortes e que
entram a matar com o vinho verde.
Um ambiente de fraca luz avermelhada vinda do teto de lindos
globos franjados, com os menus escritos nas paredes em bonita caligrafia
Chinesa, uma música suave de acordes orientais e um ótimo ar-condicionado em
contraste com o calor infernal e a umidade, típicos do Sul da China. Comemos no
primeiro andar.
Eu e o Kenneth juntos, levamos normalmente umas duas horas a
comer.
A sobremesa foi fruta fresca, melancia, melão, papaia,
manga.
Depois saímos e fomos ao remate final, uma Bica e um
Conhaque num café Português.
Aí pelas cinco horas da tarde fui levar o Kenneth no meu
carro-azul ao Terminal de Jetfoils para Hong Kong.
Uma Deusa Feliz
O velho Monge deu-nos uma condição: os dedos teriam de ficar
exatamente da mesma cor, serem perfeitos e não se podiam notar fissuras, ou
qualquer sinal de que não eram os dedos originais.
Uma semana depois, fui para a China, passei a fronteira e
fui para o Continente Chinês para a província Chinesa colada à Península de
Macau, Zhuhai.
Aí, em conjunto com um velhote Chinês meu empregado, o
senhor Lou, andamos dois dias a visitar Cemitérios Chineses e onde finalmente
descobrimos um artesão de mármore, especialista em campas de cemitério, o
senhor Lam.
O senhor Lou explicou o que pretendíamos. Dias depois lá
estávamos nós já em Macau: os senhores Lou, Lam e eu no Templo em frente à
Deusa para se definir exatamente o que se pretendia.
Um mês depois, o trabalho estava feito... e perfeito!
Nesse dia, o Kenneth veio a Macau e lá fomos os dois ver o
fruto do sonho dele e do meu empenho.
Olhamos talvez uns cinco minutos para a Bela Deusa Branca.
O Kenneth comoveu-se de felicidade e eu fui atrás da sua
comoção, nem sei por que, talvez por instinto ou por sentir as emoções que lhe iam
à Alma?
Depois ele perguntou-me quanto tinha custado o trabalho. Eu,
como era óbvio, não queria que ele pagasse, mas ele não queria que o custo
fosse só meu.
Bom... tivemos que dividir as custas ao meio.
E a nossa Amizade Ocidental-Oriental ficou mais forte e
selada para sempre.
Depois de virarmos as costas, a Bela Deusa Branca, deve ter
sorrido de felicidade, para todo o sempre...
Fonte: http://www.fitinizini.com/
tradução livre: SilviaMontone